Folha de Sala Rebentos’24 sessão 4 e 5

MISTIDA, 2022

Realização FALCÃO NHAGA Argumento FALCÃO NHAGA E PEDRO CABRAL Interpretação BIA GOMES E WELKET BUNGUÉ Produção MARIANA MORAIS Direção de Som DIOGO ALBARRAN Direção de Fotografia CAROLINA ABREU Montagem MARTA LOPES

Mistida é sobre uma mãe e um filho, mas muitas mães e muitos filhos também – nestes corpos intersecionam-se famílias, comunidades, países inteiros, gerações passadas e presentes e futuras – o tempo espirala, a linearidade estilhaça-se. O caminho que Odete e Nelson fazem carregando as compras até casa é também um percurso-espelho das suas memórias, sonhos e desejos, em quase nada partilhados e, por isso, doloridos. A vontade profunda da mãe de regressar à Guiné, terra de onde brotou, manifesta-se pelo inconsciente, que de noite a leva em excursões oníricas onde se reúne com familiares com quem partilha refeições. O filho, por sua vez, seguiu suas direções e embrenhou-se nas instituições portuguesas – trabalha como professor universitário e não quer deixar o que construiu para trás. Desliga-se do hábito de sonhar e bem dormir, esquece as músicas que a mãe lhe cantava e talvez acredite nas mentiras que Portugal lhe conta, mas nota-se que guarda com carinho as vivências de infância, o sítio onde cresceu, e que deseja cuidar da sua mãe tanto quanto ela quer cuidar dele – divergem nas formas de expressão, mas a ternura é comum.
Atravessados por diferentes perceções do mundo, continuam ou não o circuito das tradições que lhes foram passadas, encarregam-se do que transmitem a quem vem depois – porque sempre se transmite algo – um algo mutável que será transformado por quem recebe. A cultura modifica-se constantemente, perde e ganha a toda a hora, mas também importa notar que conhecimentos são sistematicamente remetidos ao esquecimento – essas são trajetórias que a branquitude não conhece.

Vera Barquero

SUITCASE, 2023

Realização e Argumento SAMAN HOSSEINPUOR E AKO ZANDKARIMI Produção FARIBA ARAB Interpretação MEYSAM DAM-
ANZEH

Do Irão chega-nos a dura realidade de um refugiado curdo que vagueia pelo ambiente cosmopolita de Teerão. Arrancadas as suas raízes, longe das suas montanhas, família e comunidade, tudo o que este homem tem é uma grande mala vazia que carrega durante o dia e onde se enrola de noite para dormir – escolhe um sítio, descalça os sapatos, entra na mala, fecha-a, e este é o seu espaço de recolhimento, o seu resquício de casa. Lá dentro tem colado um conjunto de fotografias de pessoas que lhe são queridas, imagens- espetro que talvez sejam o que o mantém vivo, mas, ao mesmo tempo, são a árdua e persistente lembrança da perda. O seu corpo é marcadamente feito de luto e parece que se lhe tocassem, se desfazeria em lágrimas.

Na cidade, as injustiças sociais são notórias e revoltantes. Este homem, a quem nunca ouvimos a voz, acumula perdas sucessivas e está sozinho na sua luta, mas apesar da violência que sofre, não consegue infligir semelhante nos outros. Segue calado. Para passar o tempo, mantém o ofício de construção de flautas, e encontra na alucinação uma fuga para a crueldade que vive – longe de ser única e, ainda assim, normalizada ao ponto de indiferença por quem o rodeia. Suitcase retrata uma das facetas da profunda crise social de refugiados de guerra, que permanece sem resolução à vista. São milhões as pessoas forçadas a abandonar os seus lugares, para serem recebidas em lado nenhum. Que estas vivências soem alto e que os gritos da resistência ecoem até serem ouvidos.

Vera Barquero

PARA NORTE, 2021

Realização, Produção, Imagem, Som e Montagem RUI ESPERANÇA Interpretação EDGAR COSTA, DIOGO PEREIRA Produção RUI RAMOS Imagem MIGUEL ARIEIRA, ADRIANA CARVALHO E ANA MARIZ Som DANIEL DEIRA, ANDRÉ SIMÕES

“Para Norte” é um documentário sobre o último verão de Edgar. Um último verão para se despedir dasmemórias, da era dourada da primeira infância, da prosperidade econômica, para se despedir do Alto Minho, das mesas de pedra em que ocorriam as festas ao som de José Pinhal e da quinta onde sua mãe cresceu. É ela que nos narra, sobre imagens de arquivo, a infância e a crença de que “é possível viver em comunidade”, até o momento de cortar o cordão das preocupações e livrar um filho para o mundo. Ou para Lisboa. Antes de se mudar, Edgar viaja pelos festivais do Norte, à deriva, entre boias, drogas, água batizada e uma espécie de última ceia com cereais que nos revela o novo esquema familiar que o aguarda. É a conhecida história da sucessão de jovens que procuram apartamentos para dividir a preços exorbitantes, os inquilinos anônimos. Em Portugal só restam Edgar e Diogo, com águas pelas canelas, fumando mortalhas saboreadas em uma roadtrip pela melancolia do início e do fim. Eles resgatam, além dos telemóveis arcaicos, uma dor ancestral de ver seus conterrâneos partirem enquanto dançam com os olhos perdidos.

Helena Miranda

CAIXA ABERTA, 2023
Realização e Produção GUILHERME AFONSO Produção TERESA AFONSO Interpretação LEONOR CARNEIRO Música PAULO FURTADO E JOSÉ ALBERTO GOMES Cinematografia AFONSO SERENO E GUSTAVO NINA

Há dois jovens à deriva, de mochila às costas por caminhos nortenhos, a sonhar com boleias em carrinhas de caixa aberta – toda a gente que anda à boleia quer uma assim. Caixa aberta pode ter rodas e ser um modo de deslocação que nos leva de cabelos ao vento, mas caixa aberta pode ser também coisa que guarda outras coisas dentro – abrimos a caixa e descobrimos o que há lá – abrimos o filme e encontramos outro filme dentro – percebemos que não são só dois jovens à deriva, é todo um grupo que deambula pelas estradas emaranha- das da criação de um filme. Vão percebendo à medida que vão fazendo e refazendo à medida que vão errando – vão batendo com a cabeça uns nos outros e vão escalando as palavras que atiram. Zangam-se – ou fingem que se zangam? Nunca páram para nos responder, pois estão sempre em movimento, tal como na viagem, tal como na imagem do cinema, que lhes pede que continuem, mesmo que não saibam muito bem para onde. Talvez os momentos mais estáticos sejam quando se posa para a câmara fotográfica – por breves instantes tudo pára, como uma imagem assim também pede – e dentro dessa caixa (ainda) fechada acumulam-se paisagens imóveis, ensaiam-se atitudes, presenças, abrem-se aparências, simulações – tudo pela imagem, e porque ela deixa.

Vera Barquero

LOU’S NEIGHBOUR, 2021
Realização e Argumento VICTORIA LAFAURIE e HECTOR ALBOUKER Interpretações LOU LAMPROS e MATHIEU CAPELLA
Cinematografia CÉSAR DECHARME Som LAURA CHELFI, AGATHE POCHE e CLÉMENT LAFORCE Montagem NOBOU COSTE

Vladimir toma suas decisões a partir do acaso e dos sinais do cotidiano – a mudança de um semáforo, alguém que vira-se para olhar, o tempo que uma gota demora a cair. É assim que ele determina se Lou, sua vizinha, ama-o ou não. Quando ela sai de mudança para a casa do namorado, Vladimir se vê diante do dilema: realizar uma importante apresentação sobre a dinastia Merovíngia ou ajudá-la a se mudar. Envolto no próprio desejo, ele abandona qualquer plano e segue em uma expedição de casa em casa, coletando as malas que Lou deixou espalhadas. Revolto entre a própria ingenuidade e o tratamento disparatado que recebe, o personagem compreende a sedução desinteressada de Lou. A frustração o leva a julgamentos amargos: a desinibição a torna, aos olhos dele, uma puta. Nada disso ofende Lou, eles deitam-se embriagados e Vladimir tateia os
limites da relação platônica em que está aprisionado. Estes são sentimentos de complexidade – ele a ama com devoção, enquanto o amor dela, se existe, parece nascer do reconhecimento ou da conveniência. Neste enroscado de motivações dúbias, a história de Vladimir e Lou suspende-se.

Helena Miranda

FRÁGIL, 2022
Realização, Argumento, Produtor e Montagem PEDRO HENRIQUE Interpretação MIGUEL ÂNGELO SANTAREM, FRANCISCO BELARD, CLARA DIAS E REDGI CARDOSO, SARA LEITE Produção PROMENADE Produtor JUSTIN AMORIM E TIAGO SIMÕES Direção de Som ALEXANDRE FRANCO E TOMÉ COSTA Direção de Fotografia MANUEL PINHO BRAGA Direção de Arte JOANA REIS Montagem MARTA LOPES Banda Sonora DIOGO BATISTA

De madrugada, depois da festa, Miguel nos guia por uma jornada fragmentada que compartilha com seus amigos. Entopem-se de psicotrópicos, convul-
sionam e conversam sobre encontros aleatórios, regidos pelas Regras do After, que incluem, por exemplo, não falar de coca quando não há coca, não
fazer after com o Pedro em casa e somente tocar Techno.À medida que a realidade se infiltra, alguns retornam às obrigações civis e outros continuam na busca insaciável de prolongar a onda. O personagem principal vive uma odisseia hedonista, equilibrando-se entre o trabalho num restaurante, as ligações ignoradas da mãe, o desespero por companhia e uma incessante demanda pelo Club – um personagem em si, símbolo de opressão e êxtase inalcançável. Nesta vertigem de ruídos, luzes e visitantes, somos confrontados com a essência vívida de uma geração em busca de um prazer individual que inevitavelmente se torna tanto evasão quanto prisão. Este musical absurdo (como a categoria exige) é um cinema estroboscópio que propõe uma forma de escapar das regras  através da distorção da percepção da realidade.  É uma experiência cinematográfica ao mesmo tempo experimental e despudoradamente real, onde as imagens e os sons pulsam em sincronia com o estado alterado de consciência dos personagens. Através de pupilas dilatadas e uma sinestesia febril, o filme mergulha o espectador em uma compulsão de repetição e manipulação temporal que reflete a própria natureza do vício, capturando uma juventude desiludida. “Frágil” é um coquetel de ritmos e delírios em um after interminável.

Helena Miranda

Ficha Técnica:

  • Coordenação: Carolina Pinto e Nuno Cintra
  • Programação Rebentos: Carolina Pinto, Fábio Silva, Giuliane Maciel, Inês Moreira, Nuno Cintra e Vera Barquero
  • Coordenação Rebentinhos: Laura Lemos
  • Direção Técnica: Rodrigo Domingos
  • Comunicação: Giulia Dal Piaz e Joana Enes
  • Design: Ivânia Pessoa
  • Financiamento: Câmara Municipal de Sintra, ICA – Instituto do Cinema e do Audiovisual e IPDJ – Instituto Português do Desporto e Juventude
  • Apoio: teatromosca
  • Agradecimentos: Divisão de Educação e Juventude da Câmara Municipal de Sintra, Escola Básica Maria Alberta Menéres e Escola Secundária Leal da Câmara