Folha de Sala – Rebentos ´23 sessão 3

AZUL, 2022

Realização ÁGATA DE PINHO Argumento ÁGATA DE PINHO Direção de Fotografia LEONOR TELES Som BERNARDO THERIAGA, JOANA NIZA BRAGA Montagem ALEXANDER DAVID, TIAGO SIOPA, ÁGATA DE PINHO Produção ÁGATA DE PINHO, FILIPA REIS, UMA PEDRA NO SAPATO Elenco ÁGATA DE PINHO, DIANA SÁ, MARIA GIL, MARIA ALICE DE PINHO, ÍRIS

Azul aparece-nos como um filme com uma essência quase experimental. A personagem principal, quando vê aproximar-se o seu vigésimo oitavo aniversário, acredita que irá deixar de existir. Ágata de Pinho filma a chegada a esse momento de desaparecimento, que se prova falso no final do filme. É um filme de sensações, que deambula sobre as ideias de pertença e não pertença. A sua personagem é uma figura marginal, que está à margem dos outros, mas que parece até mesmo estar à margem dela própria. A procura pela identidade é intensa em Azul. Uma procura que não nos parece de fácil compreensão, entrando neste caráter quase experimental do cinema, sendo uma procura mais sensorial que intelectual. E esta imensidão de sensações culmina numa quase dança do corpo, parecendo que estamos perante uma performance. A realizadora é também a atriz, e este pode ser um filme que se funde um pouco com a realidade. Sendo a sua primeira realização a solo, poderá indicar-nos esta procura também de um lugar enquanto realizadora. A procura é identitária, mas é também artística.

Inês Moreira

SALTWATER, 2022

Realização e Animação: DECLAN MCKENNA Música MAYA HALKO

Saltwater é um coming-of-age de animação que nos fala de fases de vida, de relações, de transição, e de mudança. É um filme que visualmente se mostra criativo, as suas imagens são criadas com ajuda de inteligência artificial e partem de um arquivo fotográfico. Tem uma essência artística muito presente, e retrata lugares próximos do espectador, como as mudanças em relações.

“How will you remember me?” aparece a certo ponto durante o filme e transporta-nos para aquele momento, que todos já vivemos pelo menos uma vez na vida (mesmo que não necessariamente sobre relação amorosa), no qual a nossa relação com o outro se transforma, e é criada uma distância que antes não existia.

Nesse momento deparamo-nos com o pensamento de como irá ficar marcada a nossa presença na memória do outro e como irá ficar o outro marcado na nossa memória. Saltwater é sobre estes momentos de viragem e sobre a forma como lidamos com eles e como eles influenciam a nossa própria visão de nós mesmos. É um filme que tem ainda alguma ligação com o mar, quer no seu título quer nas imagens aquáticas presentes. E este mar é também personagem em constante mudança e talvez as suas marés possam ser vistas aqui como uma metáfora para as várias fases das relações que mantemos com os outros.

Inês Moreira

MAX AND THE FREAKS, 2021

Realização, Argumento, Fotografia NATHAN CLEMENT Som, Co-argumentista MAËLWENN LOBBÉ Montagem NOÉMIE RUBEN Produção HEAD — GENÈVE – DÉPARTEMENT CINEMA Elenco MATTHIEU LA BROSSARD, CIEL SOURDEAU, CHARLOTTE SCHULTZ, JULIE SCHULTZ

“Max!”, surge então o sinal. Se defendermos que a identidade é uma constante continuação, “Max Et Les Estranges” reforça a importância da reminiscência. Uma ideia platónica do ser; que, se por alguma obrigatoriedade, tiver de se ancorar no presente, seria uma constante busca e nada mais. Uma vez acordados não há volta a dar senão encarregarmo-nos de seguir o caminho amarelo e não olhar para trás.

Em espaços distorcidos pela perceção e realidades quase tangíveis são nos dadas a conhecer personagens idiossincráticas e encontros improváveis. Tudo através de Max, personagem central. Num encontro entre Leo Carax e Bertrand Mandico é a coerência visual que une o desmembramento do filme. Refiro-me especificamente à divisão espacial e temporal (muitas vezes simultânea) das ações. Os personagens
cruzam-se e desvanecem no instante seguinte: o que é o encontro para a permanência do “não ser”?

Neste preciso instante, mergulhamos. O identitário passa a ser experiência: lembrança, sensualidade, insegurança. Como o uivante trompete no topo da colina, somos atraídos, hipnotizados; como a baterista, somos sensualizados; como o cacheiro viajante e sua flor, somos relembrados de um passado. Fragmentos sem nunca perder o núcleo: o interior representado no exterior. Perdidos pelo que parece ser uma eternidade a mesma voz impulsora, pode ser o grito que nos retorna; ou como mais céticos dirão, nos acorda de vez. “Max!”.

Gabriel Garcia Nery

MORTE EM AGOSTO, 2023

Realização e Argumento BRUNO ABIB Direção de Fotografia MANUEL PINHO BRAGA Som MARCELO TAVARES Montagem e VFX BRUNO ABIB E MÁRIO ESPADA Produção MANUEL ROCHA DA SILVA, BRUNO ABIB Elenco: TEOSSON CHAU, ELOY GOMES, KAMILA FERREIRA, DIOGO CARVALHO, CUCA BARBOSA, DIOGO TELES

Um mês quente. Repleto de possibilidades. Abrimos com Abel fugindo, ensanguentado. Ouvem-se sirenes, sente-se a tensão. Neste momento, instala-se a possibilidade de um thriller, modernizado – dado o seu contexto social. O desfecho da curta-metragem não se poderia afastar mais: é nos apresentado um retrato da violência. No querido mês de Agosto, rivalidades e rebeldias encaminham-nos para o “inevitável”. Sinto, mesmo assim, que o poder do filme quase subtrai a catarse final.

Enquanto Abel e alguns dos seus colegas defendem posições e decidem como agir aos desacatos causados, Rafa, uma outra personagem fuma no seu quarto, alienado. Chegam as notícias de um possível confronto (resultando numa enorme explosão que atinge um quarteirão vizinho).

É aqui que “Morte em Agosto” utiliza o seu trunfo. Quando me referia ao retrato da violência apercebamo-nos da sua plasticidade. O ritmo do filme até este momento contrariava, de alguma forma, a inércia causada pelos atos dos demais – até que Rafa, se vê materializado num formato videojogo (também ele moderno). Parece-me existir uma necessidade tão grande de afastamento entre desassociação e identidade, que a única resposta é uma absorção paradoxal: tanto nos é distante a realidade da violência rodeante que a solução se torna osmose.

Gabriel Garcia Nery

THEY MADE ME BELIEVE I WAS DADDY’S GIRL WHEN I WAS IN FACT MOMMA’S BOY, 2021

Realização, Argumento, Fotografia, Montagem e Produção SOL DUARTE

Sol Duarte faz-nos chegar um documentário autobiográfico passado durante a quarentena em Portugal. É com imagens da linha de Sintra que o filme abre, talvez num alerta ao espectador da viagem que irá embarcar, e que embarcou também Sol Duarte naquela altura. Uma viagem de descoberta de um eu em constante mudança. O espectador é interpelado ainda no final do filme quando é encarado de frente, numa quebra da quarta parede, que poderá significar a urgência para que todos nós nos compreendamos melhor a nós mesmos.

Em tensão estão duas ideias chave: a ideia da construção que faziam da personagem principal enquanto criança e a ideia da construção que ela mesma faz dela própria no momento atual. E esta segunda construção é uma construção em aberto. Sol Duarte identifica-se como pessoa trans não binária que usa pronomes masculinos e neutros, e afirma-o dizendo que esta conceção não foi sempre igual durante toda a construção do filme.

They made me believe I was daddy’s girl when I was in fact momma’s boy é uma viagem sobre o eu, sobre identidade, sobre género. É um incentivo ao pensar em prol de desconstruir e é, sobretudo, um incentivo à liberdade de expressão num culminar de uma melhor identificação pessoal e relacional. As fotografias de arquivo utilizadas em contraste com as imagens de Sol a arranjar-se perante a câmara são um bom exemplo de como a personagem ultrapassou este lugar com o qual não se identificava e criou ele mesmo a sua própria forma de identificação.

Inês Moreira

MUSGO, 2021

Realização, Argumento, Montagem e Produção ALEXANDRA GUIMARÃES e GONÇALO L. ALMEIDA Direção de Fotografia GONÇALO L. ALMEIDA Som MANUEL ANTUNES Elenco MÓNICA MOURA, SARA FERNANDES, DIOGO RODRIGUES, NUNO MOURA, ARI MACHADO, BÁRBARA DUARTE, MEL MACHADO, SALVADOR MEDEIROS, ZAHRA MEDEIROS, BRUNO GOMES, FLÁVIO ALVES, RODRIGO GOMES, ANDRIANA FRASCO, JOANA COSTA, MARGARIDA MENDES, RAFAELA SÁ, FLÁVIA BERNARDES, LURDES RODRIGUES, MARGARIDA CARRELO, PADRE ANTÓNIO FONTES

Sempre me debati com a obscura raiz da sabedoria campestre. De onde se materializa o conhecimento pastoral que tanta resistência tem à linguagem e costumes do homem moderno. “Musgo” apresenta-nos, com reforço no sensorial, uma hipótese. Por momentos, consegue até superar uma hipótese e tocar mesmo no que poderia ser considerado substancial. Abrimos com a eterna unção. Numa ponte de pedra, suspensa sobre uma cascata, um casal encontra-se com o padroeiro pronto a dar as boas graças à criança por nascer. O ambiente é soturno, incerto – não é algo que se aproxima, mas algo que já habita debaixo da pele, das arvores. Descrevo este começo porque é, de uma forma muito icónica, a representação do que “Musgo” aparenta deduzir.

Este cenário envolto na natureza não é o bem, nem o mal; não carrega consigo a luz na escuridão nem a consome. São equilíbrios – estâncias de permanência, como um espectro. A ideia parece ser reforçada com a existência da criança do seu vestido branco; pairando sobre a vida dos mortais e animais. Em simultâneo, apresentam uma sabedoria astral, uma ligação imperativa com a vida e a morte, com a folia e o traje, aparência ou crença. Mas não descuremos o mal, nem a serpente nem o musgo, nem mesmo os Caretos. Nenhum elemento é narrativo per se, são sinais, aproximações sensoriais, quase bucólicas, mas igualmente desconcertantes. É nesta suspensão que poisa a sabedoria, na rejeição do etéreo e na apro-
priação do físico. “Trago comigo o terço na mão e o diabo no coração”.

Gabriel Garcia Nery

Ficha Técnica

  • Coordenação: Carolina Pinto e Nuno Cintra 
  • Programação Rebentos: Carolina Pinto, Fábio Silva, Giuliane Maciel, Inês Moreira, Nuno Cintra e Vera Barquero
  • Direção Técnica: Rodrigo Domingos
  • Comunicação: Giulia Dal Piaz e Joana Enes
  • Design: Ivânia Pessoa e Mariana Correia 
  • Produção: Carolina Pinto, Giulia Dal Piaz, Ivânia Pessoa, Nuno Cintra 
  • Fotografia: João Beijinho
  • Vídeo Promocional: Carolina Pinto e Ivânia Pessoa
  • Apoio: Câmara Municipal de Sintra
  • Agradecimentos: Divisão de Educação e Juventude da Câmara Municipal de Sintra