Folha de Sala – Rebentos ´23 sessão 2

A STRAIGHT STORY, 2021

Realização, Argumento e Produção JOÃO GARCIA NETO Interpretação YEVGENIYA NEKRASOVA e JOÃO GARCIA NETO Música HENRIQUE VILÃO

Duas coisas a propósito de A STRAIGHT STORY, de João Garcia Neto.

Em primeiro lugar, o ritmo. A narração, pausada, em off, acompanhada por uma ausência de imagens, é interrompida pelo movimento (e pelo som) de um comboio a andar, por imagens fugazes da paisagem vistas desde o interior da carruagem. À palavra que se alonga, espaçadamente, descrevendo ora um filme,
ora o exterior, sobrepõe-se o ritmo acelerado das imagens captadas pelo olhar e que nos coloca, agora que a palavra se emudeceu, no seu próprio lugar.
É então – e isto leva-me ao segundo ponto – que o filme se inverte e desdobra, em que imagem e palavra se justapõem para criar, pese o oxímoro, uma história e uma narrativa não lineares. A palavra desenha um plano que não coincide, pelo menos não necessariamente, com o da imagem projectada, não se resumindo, portanto, a uma sua mera ilustração ou a um simples acrescento ou complemento. A imagem, dando uma outra dimensão à palavra narrada e falando sobre aquilo que a narração não capta, autonomiza-se dela.

João Ayton

A FELICIDADE E COISAS MÓRBIDAS, 2021

Realização DÉBORA GONÇALVES Argumento DÉBORA GONÇALVES e MARGARIDA CARVALHO Produção RUI VASQUEZ Edição DÉBORA GONÇALVES Imagem ANDRÉ AMARAL Som FILIPE ALVEZ

No primeiro capítulo da série DEKALOG, de Krzystof Kieslowski, “Amarás a Deus sobre todas as coisas”, uma criança pergunta ao pai por que razão as pessoas morrem e o que é a morte. Após as respostas frias, secas e “científicas” do pai, a criança remata: «E o que é que resta?», ao que o pai responde: «O que uma pessoa fez. A memória do que fez… e dela. A memória é importante».
A FELICIDADE E COISAS MÓRBIDAS, de Débora Gonçalves, a história de um filme que nasce, dá os seus primeiros passos, acabando por «morrer na praia», para usar aqui um dos grandes planos do próprio filme, após a morte da realizadora, dá forma e consistência a esse lugar depois da morte. Da memória da realizadora que resta à equipa, dos restos de um filme inacabado, resta-lhes impregnar-se numa dimensão que sobrepõe a ficção do filme à realidade da sua não-concretização. E é precisamente nessa sobreposição que se materializa a memória, em que mais do que terminar um projecto interrompido abrupta e inesperadamente, a equipa cria o tempo e o espaço para a rememoração.

João Ayton

HAPPY LAND, 2022

Realização e Argumento NOUR KHAIR ALANAM Montagem e Correção de cor WAEL TAHA Elenco SAMER OMRAN, AL FARAZDAK DAYOUB, HOSAM ALSALAMA, MIKHAEL SALIBI, FAOUZI BCHARA, MOHAMMAD W KAZAK, MOHAMMAD SAKOR e ROMAN ZACARIA

Seguindo o encadeamento de imagens típico de um thriller ou de um road movie, o filme mostra-se, no entanto, enraizado na paisagem. O leito de água, que aparece ao início, dá lugar a uma ambiência cada vez mais deserta, permanecendo ao longo da ação uma estranha e árida ausência, como se faltassem razões para as decisões das personagens.
Ao sabor de mestres do cinema iraniano, como Pahani ou Kiorastami, ou pelo menos sob influência da vastidão de semelhante paisagem, os caminhos que o filme percorre são múltiplos, explorando algumas das fraquezas do tecido social sírio. Da inaptidão do pomar, que poderia ter produzido um homem honesto, à exploração do trabalho jovem ou da própria morte, parecem poucas as formas de assegurar um limiar de subsistência por via honesta.
O triângulo de roubo e perseguição abre-se, então, ao imprevisto de um encontro. Dá-se a possibilidade de por término a essa cadeia de acontecimentos e, assim, assinalar o início de um ciclo que começa ali, junto a uma roda de circo parada, na berma de uma estrada.

Afonso Matos

FLORES PARA O MEU PAI, 2022

Realização, Argumento e Montagem LUÍS AFONSO MATOS Produção MIGUEL AIDO, RODRIGO TEIXEIRA, PEDRO MARQUES, ESCOLA SUPERIOR DE TEATRO E CINEMA Som VICENTE MOLDER Imagem MARIANA SANTANA, JOSÉ LOBO ANTUNES, PEDRO CABRAL Arte e Anotação PEDRO ABREU Assistência de Realização GONÇALO PINA Assistência de Montagem MARA BOYCE Elenco PAULO JOÃO, RAFAEL OLIVEIRA

Tudo no filme aponta para um elemento sensorial. Não é preciso dizer ou explicitar demasiado o que acontece, em que pormenores reside a leitura da ação. Os cenários estivais, onde se movem em harmonia ou confronto pai e filho, são mais um estado mental do que suporte de alguma narratividade. É a relação que
ali interessa, uma partilha de familiaridade que nos atraí ao seu âmago.Para entrar neste ambiente, é preciso escutar o som, perscrutar mudos diálogos, ou chamamentos entre as duas personagens, aprender a falar a sua língua e a comunicar com o que os rodeia. Por este tipo de exploração temática, de relações de afeto e intimidade, tem passado boa parte do cinema português, ao qual este filme – seja de forma intencional ou por influência contextual alude. A curta-metragem é uma homenagem, um ato de amor, demonstrativo de uma intensidade na relaçãocom o outro e com a paisagem. Ela apela tanto ao questionamento desta forma, imagens de arquivo familiar trabalhadas pelo cinema, como da realidade por ela vinculada.

Afonso Matos

NHA FIDJU, 2022

Realização, Argumento e Produção DIOGO “GAZELLA” CARVALHO Interpretação JOSÉ PEDRO HENRIQUE e CÁTIA SEMEDO RAMOS

«Meu filho, minha carne, meu peso». Uma carta de uma mãe a um filho, de uma mãe sem filho, e de um filho sem mãe. No filme SUDDENLY, LAST SUMMER, de Joseph L. Mankiewicz, baseado na peça homónima de Tennessee Williams, Violet Venable (Katharine Hepburn), uma mãe que perdeu o filho num acidente tão trágico quanto misterioso, a dada altura diz o seguinte: «Enterrei um marido e um filho. Sou viúva e… É curioso, não há uma palavra para isto. Quem perde os pais é órfão. Quem perde o filho único é… nada».
NHA FIDJU, de Diogo “Gazella” Carvalho, é, justamente, um filme sobre esse nada. Um nada cuja magnitude se faz sentir enquanto vazio («deste-me brilho, no meio das trevas, no meio do escuro, mas foste tu que apagaste a luz») e enquanto peso («meu filho, minha carne, meu peso»). Mas esse nada é também o nada da significação, o nada que assinala a ausência de conceito capaz de definir os contornos de uma condição e experiência particulares. O nada, enfim, como ausência de nome, como aquilo que não poder nomeado.

João Ayton

Ficha Técnica

  • Coordenação: Carolina Pinto e Nuno Cintra 
  • Programação Rebentos: Carolina Pinto, Fábio Silva, Giuliane Maciel, Inês Moreira, Nuno Cintra e Vera Barquero
  • Direção Técnica: Rodrigo Domingos
  • Comunicação: Giulia Dal Piaz e Joana Enes
  • Design: Ivânia Pessoa e Mariana Correia 
  • Produção: Nuno Cintra, Nuno d´Eça, Sofia Poupinha
  • Fotografia: João Beijinho
  • Vídeo Promocional: Carolina Pinto e Ivânia Pessoa
  • Apoio: Câmara Municipal de Sintra
  • Agradecimentos: Divisão de Educação e Juventude da Câmara Municipal de Sintra